Dra. Júlia Carvalho
“A comida chegou”: o aviso no rádio já gera subitamente um ronco na barriga e os pés já nos levam imediatamente pro refeitório. E que fome… Puxo a cadeira de plástico, saco meus talheres da mochila e, naquele alvoroço da comida na mesa, um novo chamado no rádio: “Dra Julia na escuta? Óbito na maloca” … “Na escuta, tô indo”. Sem nem pensar, pulo da cadeira já vestindo meu colete, minha mochila e saio correndo.
Ao entrar na maloca, me deparo com um bebê amolecido e pálido, no colo da sua mãe, numa rede yanomami. Essa mãe aos prantos. Cercada por mulheres aos prantos, com seus outros bebês grudados no peito. Elas gritam palavras que eu não compreendo. E não permitem qualquer aproximação.
Observo que a criança respira, mas não me atrevo a tocá-la. Chamo imediatamente o tradutor pelo rádio. Nosso elo de comunicação verbal.
Elas entoam cânticos e preces em suas línguas. Choram desesperadas como mães de todas as línguas. O adoecer para essas mulheres tem um significado que jamais compreenderemos em sua totalidade. A perda de consciência, os desmaios, as convulsões, têm significados semelhantes a uma morte temporária. Causados pelas doenças “xawara”.
Observo que não há nenhum homem ao redor. Só elas estão ali. As mães, tias, avós… parentes. Elas e seus bebês no peito.
A criança segue no colo da mãe, mas agora com os músculos rígidos. E evacua. “Convulsão”. “Será que essa criança já teve esses episódios antes? Será que ela estava doente? Fez lâmina de malária? Será que ela está com febre?”: a mente fervilhando, mas sigo ali, ao redor, no meu lugar permitido, aguardando o mínimo sinal de autorização vindo delas para poder intervir.
Chega o tradutor (ou melhor, o mediador cultural – essa intermediação vai muito além da barreira linguística).Peço a ele que explique que precisamos avaliar a criança. Elas se agarram ainda mais ao bebê e choram ainda mais. Dizem que a criança está morta. Dizem que sempre acontece isso quando ela fica doente. “Convulsão febril!”. Me aproximo cautelosamente e a toco: fervendo de febre. Vou calmamente me comunicando, verbal e não verbalmente. E a mãe finalmente aceita ser conduzida ao posto médico.
Sinais vitais. Peso. Solicito a medicação imediatamente. A angústia do acesso venoso em um filho cuja mãe nunca se viu tocar por uma agulha. A cautela que muitas vezes perdemos durante as intervenções de emergência, tomados pelo sentimento de “salvadores”. Crise controlada. Criança no peito da mãe. “E eles querendo que a gente fale sobre agosto dourado”. Segue o “xabori”. E segue no peito. Criança sem óbito “ressuscitada” por uma médica branca, desconstruindo diariamente seu papel “colonizador-salvador.” Transferência pronta. Repasso à equipe. O estômago ronca. “Hm… peixe com farofa”. E o agosto dourado…